CAP. II
A ORIGEM

Samuel Câmara, da Rede Boas Novas, prega a seus fiéis durante culto em Belém (PA) | Foto: Arquivo pessoal / Divulgação

CAP. II
A ORIGEM

Samuel Câmara, da Rede Boas Novas, prega a seus fiéis durante culto em Belém (PA). Crédito: Arquivo pessoal / Divulgação

A maior igreja pentecostal do país tem mais de 12 milhões de fiéis e uma estrutura de mídia construída a partir da atuação religiosa e política dos seus donos

Por Maria Martha Bruno

O versículo 15 do capítulo 16 do livro de Marcos, no Novo Testamento, detalha a mensagem de Jesus ressuscitado diante dos olhos incrédulos de seus discípulos. No Norte do Brasil, uma família tomou tal determinação como base de seu trabalho e assumiu a pedra fundamental da maior igreja evangélica do país, expandindo a Assembleia de Deus (AD) por quase 4 mil templos na região, e criando outros negócios a partir da instituição. As raízes da Assembleia estão em Belém (PA), onde dois missionários suecos criaram a igreja no início do século passado. Coube aos Câmara comandar e expandir a chamada igreja-mãe, já que dela nasceram todas as demais subdivisões da Assembleia de Deus espalhadas pelo país (como a AD Vitória em Cristo, de Silas Malafaia). Hoje, a denominação religiosa totaliza 12,3 milhões de fiéis, segundo o Censo de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Sob o púlpito dos Câmara, há 3.500 igrejas no Amazonas, 387 no Pará, 187 em São Paulo e quatro no Rio de Janeiro (estas abertas em apenas um ano). A expansão se deu do Norte para o Sul. Mas, ao criar a Convenção da Assembleia de Deus no Brasil (CADB) em 2017, Samuel Câmara, líder da igreja-mãe, reuniu 20 mil pastores, dessa vez por todo o país. No Norte, ele ainda fundou a rede de televisão e rádio Boas Novas, presente em 23 estados, além de uma faculdade e um colégio. A família também chegou a Brasília, onde desde 1999 Silas Câmara, irmão de Samuel, conta com uma cadeira de deputado federal. São seis mandatos seguidos.

Entre novas e antigas gerações, a principal justificativa para os amplos projetos da família remete a uma espécie de atualização do direito divino dos reis, conceito que baseou o absolutismo de monarcas na Idade Moderna: na vontade de Deus repousava a legitimidade de reis e rainhas para comandarem a nação. “Vejo a bênção em favor de Deus sobre a família. Cada um dos meus tios se dispuseram a trabalhar muito duro e tiveram destaque pelo que fizeram e pela excelência do seu trabalho. Foi tudo muito natural”, diz André Câmara, filho de Samuel. Ele também é pastor e diretor comercial, de criação e inovação da Rede Boas Novas. Para André, a família não tem um projeto de poder em curso, mas de representatividade.

A multiplicidade de espaços de atuação –  mídia, política, religião e educação – também não são estruturas de poder, na opinião do deputado Silas Câmara (PRB/AM): “Todas essas ferramentas estão a serviço do Evangelho de Jesus Cristo”. Rádio, televisão, salas de aula e o parlatório da Câmara dos Deputados são instrumentos de pregação da palavra de Deus. “Você só pode pregar o Evangelho indo por todo o mundo, se estiver em todo lugar. Então nossa estratégia é estar presente nos locais de decisão ou com as ferramentas de cobertura que possam levar a mensagem de Jesus Cristo ao povo brasileiro ou aos demais países do mundo”, completa.

Em tempos em que a pauta moral e de comportamento ganha mais relevância na agenda do país, com Jair Bolsonaro na Presidência da República, os assembleianos da igreja-mãe têm posição clara e alinhada com o projeto político dominante no país: “Nós entendemos que homem se relaciona com mulher e mulher com homem. É o que a Bíblia nos recomenda”, diz a diretora-executiva da Boas Novas, Celeste Fernandes, prima de Samuel. Ela ressalta que homossexuais são amados da mesma forma e que, inclusive, têm espaço nos quadros da empresa: “Eles não têm menos valia de jeito nenhum”.

Mas, quando perguntada se “ideologia de gênero” – uma das principais preocupações do presidente da República – de fato, existe, a reflexão de Celeste interrompe a entrevista com um silêncio de 15 longos segundos. E ela mede as palavras ao responder: “Acho que vem-se buscando fortalecer conceitos de que ela exista. Eu acredito que isso tem gerado um desequilíbrio social, tanto para homens quanto para mulheres. A gente vive um momento em que se quer tornar tudo tão comum e desestruturar tudo, que muitas vezes nem o homem nem a mulher sabem mais qual é o seu papel real”.

A progressiva redefinição dos papéis de gênero que visa uma maior equidade na sociedade e conquistas de direitos da população LGBT+ geraram tensão em estruturas até então predominantes e agora ameaçadas pelas discussões sobre a flexibilidade do lugar de homens e mulheres: “Ser do lar e recatada virou chacota”, resume Celeste. Também cauto, André Câmara afirma que o grupo da igreja-mãe é contrário ao conceito, mas evita radicalismos: “Sabemos que existem exageros nos dois lados do discurso. Mas a gente tem um posicionamento equilibrado, firme e bíblico sobre isso, para não parecer muito fundamentalista e polarizado. A gente gosta de promover o debate inteligente e não a polarização do discurso, para não torná-lo burro”.

O diretor da Boas Novas aposta em uma forma mais astuta de lutar a batalha ideológica sobre o tema no país: “Em vez de ficar batendo-boca com grupos, nós produzimos conteúdos de qualidade, onde refletimos valores cristãos.  (…) A gente pontua e pondera esses pontos de estruturação familiar, que são pai e mãe. E fazemos de uma maneira muito suave, simples e equilibrada”.

Projeto infantil da Boas Novas, o canal “3 Palavrinhas” possui 2,52 milhões de inscritos no YouTube. Um dos vídeos, ainda de 2014, chama-se “Família Original” e contava, até o fechamento desta reportagem, com 22 milhões de visualizações. Ele mostra os membros da família representados pelos cinco dedos da mão. “Que forte é o pai polegar/ A mãe a rainha do lar/ O irmão é maior / A irmã é menor / Bebê vamos nós embalar”, diz a música.

“A gente faz animações para crianças demonstrando o padrão bíblico de família. Não somos muito de trazer para debates ferrenhos porque entendemos que às vezes eles não levam a lugar nenhum”, explica André.

Naiane Câmara, conhecida na comunidade como “pastora Naná”, com o marido, André Câmara, diretor da Rede Boas Novas | Foto: Arquivo pessoal / Divulgação

A mulher de André, a pastora Naiane Câmara, é outra referência moderna na igreja. Ela usa do humor e da beleza loura de olhos azuis nos cultos que ministra no Rio de Janeiro para revisar a imagem cristalizada das mulheres assembleianas com suas saias e cabelos longos. Com uma linguagem descontraída, a “pastora Naná”, como é conhecida entre os assembleianos, ressalta também em suas redes sociais os valores defendidos pela instituição: “Eu falo que eu já nasci maquiada e pronta! Kkkkkkk (…) Nos (sic) mulheres cristãs temos que ser testemunho até nisso. Ser bem cuidada, se amar e sempre se valorizar!!!!! Amooo gritar com medo de insetos (SOU DESSAS) rsrs, fazer drama porque a unha quebrou, chorar querendo um sapatinho para o maridão (…)”. Em entrevista ao portal cristão Pleno News no ano passado, ela afirma que “acredita na mulher que é submissa ao marido. Ela não tem que estar acima do marido, mas do lado, junto”. Quando perguntada sobre dicas para mulheres que pensam em desistir de seus parceiros, Naiane sustenta o conservadorismo usando uma linguagem jocosa: “Agarra esse homem com tudo!”.

Deus os abençoou e lhes disse: “sejam férteis e multipliquem-se! Encham e subjuguem a terra”
Gênesis 1:28

A origem da Assembleia de Deus no Brasil explica sua alta penetração na Região Norte. A instituição foi fundada pelos missionários suecos Daniel Berg e Gunnar Vingren, que chegaram a Belém (PA) vindos dos Estados Unidos, em 1910. Sob forte influência pentecostal adquirida na América do Norte, eles inicialmente se estabeleceram na Igreja Batista de Belém, mas acabaram se desligando por divergências com a instituição. Inicialmente chamada Missão de Fé Apostólica, a igreja criada por eles receberia o nome de Assembleia de Deus oito anos depois. De Belém, a instituição se espalhou para o restante do país. Com o trabalho de missionários, chegou em 1914 a Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba e Alagoas; no ano seguinte a Roraima; em 1917 ao Amapá e Amazonas; e na década de 1920 aos demais estados do Norte e Nordeste, além de Sudeste e Sul.

Desde 1997, a Assembleia de Deus em Belém tem como líder o pastor Samuel Câmara, que fundou a Rede Boas Novas quatro anos antes. Na emissora, ele apresenta o programa “Voz da Assembleia de Deus”, também veiculado aos sábados pela manhã em espaço comprado na Rede TV!. Com os irmãos Silas e Jonatas, ele forma a tríade de poder da instituição no Norte do país, embora sua extensão de influência se espalhe por outras regiões.

Silas Câmara conquistou ano passado seu sexto mandato consecutivo como deputado federal pelo PRB, partido ligado à Igreja Universal do Reino de Deus. Além de político, ele também é pastor no Amazonas. “Minha eleição é estruturada a partir da comunidade evangélica no meu estado. Destaco a Ieadam (Igreja Evangélica Assembleia de Deus no Amazonas), a Igreja Universal [do Reino de Deus], a Igreja [Assembleia de Deus Ministério de] Madureira e a Igreja [do Evangelho] Quadrangular. São as igrejas que fortemente mais me abraçam sempre que passo por uma eleição. E obviamente nossos principais compromissos são com os princípios cristãos, com a vida e com a família”, diz Silas.

A Igreja Evangélica Assembleia de Deus no Amazonas (Ieadam) é liderada por Jonatas Câmara, irmão de Silas e Samuel. Os homens da família incluem ainda o coronel da Polícia Militar do Amazonas Dan Câmara, que chegou a ser comandante da corporação no estado nas gestões de Omar Aziz (2011-2014) e Eduardo Braga (2004-2010). A pastora Eliab Câmara é a única filha viva. Ela chegou a ser coordenadora do Instituto de Educação Boas Novas, colégio fundado em 1993 como Centro Educacional O Semeador. A outra irmã era Eliúde, falecida em 2009.

Todos são filhos de Severo Câmara, pastor da Assembleia de Deus, que morreu em 2017. “Meu avô foi um funcionário público que também se envolveu com política. Não foi candidato, mas se relacionava muito bem politicamente. Tinha muita preocupação com o desenvolvimento pessoal, espiritual e de estudo das pessoas”, diz André Câmara. O poder político dos irmãos na região está fundamentado na igreja. André ressalta que a “centralidade de todos os trabalhos – seja de comunicação, política ou de educação – é para fortalecimento da igreja de Cristo e da Assembleia de Deus à qual servimos”.

Além da Rede Boas Novas, a educação é outra frente de negócios da família, com a Faculdade Boas Novas. A instituição de ensino foi criada em 2005, a partir do Instituto Bíblico da Assembleia de Deus no Amazonas (Ibadam), fundado em 1979. “A faculdade foi um crescimento natural dos cursos que a gente tinha só para teologia. Por causa do crescimento da igreja, era preciso formar pastores. Então trabalhamos muito forte num curso de formação teológica e de administração para pastores e membros”, relata André.

Hoje, a faculdade conta também com cursos de Jornalismo, Ciências Contábeis e Pedagogia. Jonatas Câmara, a mulher Ana Lúcia e o filho Thiago, além do deputado Silas, se formaram juntos em Jornalismo em 2017. Um professor que deu aula na instituição por dez anos afirma que não há doutrinação em sala de aula, mas que a presença da Assembleia de Deus se faz notar em orações e cantos de louvor antes de reuniões e eventos. Ele afirma ainda que a maioria dos alunos que frequentam a faculdade é evangélica.

Samuel e sua mulher, Rebekah Câmara, em foto com os três filhos, noras, genro e netos | Foto: Arquivo pessoal/Divulgação

Jornalistas locais contatados pela Gênero e Número informam que nos governos de Braga e de Aziz a Assembleia de Deus possuía cotas nas secretarias do estado. “A cada eleição, todos os políticos fazem o ‘beija-mão’ do Jonatas Câmara”, conta um dos profissionais da mídia local, que pediu para ter sua identidade preservada. Em 2012, a então senadora e candidata à prefeitura de Manaus pelo PCdoB, Vanessa Grazziotin, recebeu apoio da família e participou de culto na igreja, no qual cedeu às críticas de Jonatas Câmara à criminalização da homofobia, defendida por ela no Congresso. Em troca do apoio da Assembleia de Deus no estado, Vanessa também assinou carta se posicionando contra o aborto e demais pontos que contrariassem a igreja no projeto de criminalização da homofobia.

O “beija-mão” é difundido entre toda sorte de políticos. Em 2017, quando esteve em Manaus para encontro com empresários na Federação das Indústrias do Estado do Amazonas (Fieam), o então ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, também foi ao centro de convenções Canaã, templo portentoso da Assembleia de Deus na zona sul da capital, para compromisso fora da agenda oficial com Jonatas. No culto, estavam presentes o irmão Silas e aliados da família, como o ex-senador Magno Malta (ES). Além do “beija-mão” local, os cultos também são espaços para promoção de candidaturas apoiadas pelo clã. Em 2016, Jonatas orquestrou uma multidão de fiéis ao pedir votos para um aliado da família no segundo turno das eleições para a prefeitura de Manaus. O irmão Silas havia sido derrotado no primeiro turno do pleito.

Mas o cruzamento entre política e religião já rendeu problemas para os Câmara. Na campanha de 2010, investigações da Polícia Federal mostraram que o deputado federal Silas Câmara teria captado votos entre eleitores que participavam de cursos promovidos pela Fundação Boas Novas, mantenedora da Rede Boas Novas e comandada pelo irmão Jonatas. No mesmo ano, a mulher de Silas, Antônia Lúcia, foi acusada de receber 472 mil reais em doação irregular do marido, durante campanha em que ela se candidatou a deputada federal pelo estado do Acre. Segundo ela, o valor seria contribuição de um empresário para a Fundação Boas Novas. Antônia Lúcia foi eleita, mas acabou cassada no ano seguinte.

Antônia Lúcia Câmara, cassada por doação irregular, e seu marido, deputado federal Silas Câmara (PRB/AM) | Foto: Arquivo pessoal / Divulgação

De acordo com outro repórter amazonense que também preferiu manter a identidade sob anonimato com receio de retaliações, nas igrejas do interior do estado se concentra a principal força política de Silas Câmara. Em Manaus, as denúncias de corrupção deixaram os eleitores mais céticos. O repórter relata que, além da Assembleia de Deus, o parlamentar do PRB também já teve na mão pequenos partidos como o PSC e o PEN.

Em 2015, no auge das discussões sobre “ideologia de gênero” travadas nos legislativos municipais, estaduais e federal no país, o programa de debates da Boas Novas “Cabeça pra Cima”, apresentado por Celeste Fernandes, foi dedicado ao tema. “Ideologia de Gênero e o Fim dos Tempos” discutiu se o suposto conceito seria algo já sinalizado na Bíblia, como um sinal do apocalipse. Foram convidados Ednaldo Carvalho, pastor da Assembleia de Deus; Arildo Lamoglia Braga, psicólogo e terapeuta sexual; e Rosemberg da Silva Guimarães, pastor e então membro do Instituto Brasileiro de Psicanálise Clínica e Ciências Humanas e Sociais. Os três debatedores não divergiram durante quase uma hora de atração.

Rosemberg da Silva misturou movimentos e conceitos políticos, como o feminismo e o marxismo, às ideias de identidade e “ideologia de gênero”, inserindo todos em um mesmo universo:

“Esses movimentos, como o feminismo, essa questão da identidade de gênero e tantas outras que surgiram desde o século 18 (…) adentram neste campo filosófico…. Há um grupo apenas – grupo pequeno – mas que, acompanhado da visão da formação da teoria de Karl Marx, vai trabalhando a questão de que a minoria consegue se sobrepor à maioria. E descobrem que, ao introduzir aquele pensamento, esse pensamento começa a ter um viés de cunho político e de poder”.

O pastor reverbera notícias falsas sobre países que estariam aplicando o conceito de “ideologia de gênero”. Em sua fala, identidade de gênero e “ideologia de gênero” são mesclados como se fossem sinônimos, ainda que o psicólogo Arildo Lamoglia Braga anteriormente tenha explicado a diferença. “Em alguns países, como a Alemanha, a Suécia, Holanda, onde se um pai ou uma mãe impedir seu filho, ou se seu filho já em uma determinada idade – seja criança, júnior ou adolescente – não querer (sic) ir à escola naquela aula propícia para a ‘identidade de gênero’, os pais são detidos, com a possibilidade de serem presos criminalmente”, relata equivocadamente Rosemberg. Ele se refere ao caso de um pai detido por uma noite na Alemanha em 2013 por não pagar uma multa de 150 euros imposta porque sua filha não foi à aula de educação sexual. A narrativa criada em veículos conservadores foi a de que os pais haviam sido presos por não aceitarem a “ideologia de gênero”.

Outros programas da Rede Boas Novas dão visibilidade ao assunto sem trazer o contraditório ou ampliar o debate. O telejornal da emissora veiculou em março de 2018 matéria sobre o lançamento do gibi “Viva a Diferença”. O texto é da psicóloga e pesquisadora Marisa Lobo, uma das principais referências teóricas conservadoras sobre o tema, com 105 mil seguidores no Facebook e 87 mil no Twitter. Ela é autora do livro “Famílias em Perigo”, segundo o qual o mundo vivencia “a maior ditadura sexual de todos os tempos, com contornos de subversão” e a “heterossexualidade tem sido violentamente atacada em sua normalidade, acusada de ser apenas uma conduta dentro de uma sociedade machista, sexista, opressora, de maioria cristã”.

A psicóloga cristã Marisa Lobo ganhou espaço nos programas da Rede Boas Novas com a divulgação de conteúdo sobre “ideologia de gênero” | Foto: Arquivo pessoal / Divulgação

Segundo Lobo, o projeto “Viva a Diferença” foi uma “inspiração divina”. O texto da matéria afirma que o livro busca “educar as crianças conforme os ensinamentos bíblicos”. Lobo deixa claro que a publicação faz parte de uma estratégia de combate a ideias que podem ser transmitidas em instituições de educação e que devem ser enfrentadas com os ensinamentos vindos da família. No mesmo mês, o programa “Conversa Pública” também exibiu uma entrevista de pouco mais de 20 minutos com Marisa Lobo.

Celeste Câmara nega que o “samba de uma nota só” seja recorrente na emissora e afirma que algumas vezes convidados “não rendem” na hora o que fora esperado quando da marcação das entrevistas. Ela garante que todos têm liberdade de expressão e nega doutrinação por parte da Boas Novas: “Nosso objetivo não é dizer o que o outro deve pensar ou entender, mas provocar reflexão”. Celeste ressalta que a empresa não teria problema em colocar no ar convidados defensores de pautas, em geral, antagônicas àquelas promovidas pela Assembleia de Deus, como feministas.

“Já trouxemos um judeu ortodoxo que não acredita na Santíssima Trindade. Já trouxemos espíritas. Eu já fiz programa sobre a Maçonaria. Para a gente é importante ter este contraponto. (…) A pessoa tem toda a liberdade de colocar sua opinião e dizer o que pensa. E a gente vai ter a liberdade de dizer que essa não é nossa opinião”, exemplifica e explica. Ao falar sobre “ideologia de gênero”, ela é taxativa:

“A gente acredita que homem é homem e mulher é mulher. Homem nasce homem e mulher nasce mulher”. A ideia que parece estar no cerne do suposto conceito – “não se nasce homem ou mulher, mas um ser humano sem gênero definido”, nas palavras de Silas Câmara – parece ser a maior preocupação da igreja. O parlamentar afirma que já recebeu denúncias de “aplicação” de tal ideia por professores em salas de aula do Amazonas.

Ideologia de gênero nas eleições

O assunto também ganha relevância em mensagens diretas de Samuel Câmara à comunidade assembleiana. No texto “As ideologias e o voto”, de outubro de 2018, mês das eleições presidenciais no Brasil, ele lista “ideologias predominantes no mundo, que muitas vezes tomam ardilosamente o lugar dos valores cristãos ensinados na Bíblia” e orienta seus leitores sobre como lidar com elas ao fazer sua escolha nas urnas. A “ideologia de gênero” aparece entre os males a serem combatidos:

“Tudo é relativo, inclusive os valores morais e éticos e os princípios cristãos. Basta ver a maléfica ideologia de gênero e a relativização do conceito de família, afirmando que não nascemos sendo homem ou mulher, e que o casamento pode ser homoafetivo ou poligâmico”. Para Samuel Câmara, os fiéis devem “votar contra estas ideologias” e valorizar ainda outras bandeiras levantadas pelo grupo político que venceu as eleições, como o combate ao crime e à corrupção.

O texto de Câmara terminava explicitando sua declaração de voto em Jair Bolsonaro; embora não mencionasse o então candidato, ele encerrava a mensagem com o slogan de campanha e de governo: “Brasil acima de tudo e Deus acima de todos”.

Em 22 de outubro, Samuel, seus irmãos e correligionários da Assembleia de Deus visitaram o então candidato do PSL. Na época, já à frente das pesquisas de intenção de voto, a casa de Bolsonaro, no Rio de Janeiro, era destino de um séquito de políticos, empresários e representantes de diversas áreas de interesse. Em postagem em sua página oficial, Samuel Câmara relata: “Estivemos hoje visitando o querido @jairmessiasbolsonaro em um encontro muito caloroso. Líderes e pastores da CADB também nos acompanharam. Oramos, cantamos, e conversamos sobre os rumos de nossa Naçao (sic)”. A postagem teve 203 comentários e quase mil compartilhamentos. Nas fotos, aparecem os três irmãos – Jonatas, Silas e Samuel – além de outros pastores e um dos principais aliados de Bolsonaro e árduos combatente da “ideologia de gênero”, o então senador Magno Malta.

Dias antes, em 10 de outubro, a convenção presidida pelo pastor (CADB) já havia divulgado nota oficial de apoio à candidatura do PSL. Entre as seis razões listadas para sustentar o posicionamento, está “a educação pública sem influência ideológico-partidária esquerdista e sem erotização das crianças”. Silas Câmara havia declarado sua preferência pelo colega de parlamento ainda em agosto de 2017, quando postou uma foto ao lado do então deputado federal pelo Rio de Janeiro, com a mensagem: “Quem quer Jair Messias Bolsonaro PRESIDENTE se manifeste aí curtindo e compartilhando”.

Em outro texto, intitulado “Tome cuidado com o que assiste” e divulgado em fevereiro de 2018, Samuel Câmara adverte sobre o conteúdo da televisão no Brasil. Ele instiga o leitor a questionar se “sua casa é local de assassinatos diários ou de outros tipos de males”, para logo em seguida tocar em temas sexuais e de gênero:

“Já aconteceu de alguém aparecer em sua casa e tentar convencê-lo de que o pecado sexual é uma piada, que traição é algo normal, que ideologia de gênero é aceitável, que parcerias sexuais entre pessoas do mesmo sexo é bíblico e normal, e também que a violência produzida como entretenimento é uma forma de lazer?”.

Samuel Câmara declarou voto em Jair Bolsonaro em 2018. Com seis meses de governo (13/06/2019), o presidente esteve no culto de comemoração dos 108 Anos da AD | Foto: Alan Santos/PR

Em outubro de 2017, o líder da Assembleia de Deus emitiu uma mensagem por ocasião do Dia das Crianças, na qual por diversas vezes coloca a educação sexual como motivo de preocupação para a família. Samuel Câmara inicia “Todos os Dias são Dia das Crianças” com o alerta: “As nossas crianças estão em perigo. Sempre estiveram, mas muito mais agora, com essa famigerada ideologia de gênero e todo o escopo de degradação moral que ela carrega consigo, principalmente a confusão de identidade e a erotização precoce das crianças”. Ao enumerar os perigos aos quais as crianças estariam submetidas, novamente retorna à questão: “As crianças passaram a ser alvo preferencial do inferno, através de adultos malfazejos, que sem piedade lhes destroem a inocência e a felicidade com drogas, abusos sexuais, violência doméstica, crimes, confusão de identidade de gênero (…)”.

Em outro momento do texto, o pastor alerta para os perigos da educação “exclusivamente” delegada a outros fora da família, notadamente a escola e o Estado. “Isto é um engano de custo altíssimo e de resultado duvidoso”, assinala Samuel. As instituições de ensino públicas, reguladas pelo Estado a nível municipal ou estadual, têm sido os principais alvos dos segmentos que acreditam que haja uma doutrinação sexual em curso em sala de aula. De acordo com o coletivo “Professores Contra o Escola sem Partido”, até março deste ano, pelo menos 60 projetos de lei em nível municipal, estadual e federal haviam sido apresentados para barrar supostas iniciativas de “ideologia de gênero” na educação pública.

O senhor me ungiu para pregar boas novas de salvação
Isaías 61:1

A Rede Boas Novas foi fundada por Samuel Câmara em 1993. Naquele ano, ele adquiriu a Rede Brasil Norte, afiliada da TV Manchete no Amazonas, que passava por dificuldades financeiras. A Boas Novas recebeu um aporte do conglomerado evangélico e missionário britânico Christian Vision, que comprou retransmissores para expandir o sinal da emissora no país, já que a empresa de Câmara possuía apenas a concessão de rádio e televisão para operar. Rede Boas Novas tornou-se o nome fantasia da empresa de comunicação, que está registrada como a produtora de conteúdo Rede Visão Cristã, tradução para o português da parceira estrangeira que impulsionou o negócio.

Hoje, a Boas Novas se apresenta como “a maior rede de televisão cristã do Brasil”, presente em 23 estados do país, “com 21 horas de programação inédita diariamente”. São cinco rádios próprias (duas em Manaus, uma em Belém, outra em Rio Branco, no Acre, e uma em Cabo Frio, no Rio de Janeiro) e quatro polos de produção de televisão: Manaus, Belém, Rio de Janeiro e São José dos Campos, no interior de São Paulo.

Ao explicar seus motivos para começar uma rede de comunicação nacional a partir da Região Norte, quando muitos empresários prefeririam expandir-se do Sul/Sudeste para cima, Samuel Câmara declarou ao jornal paraense O Liberal, em março de 2003: “A única resposta que tenho é que isso é ‘coisa de Deus’”.

Instalada na Zona Oeste do Rio, em um terreno de 13.000 m², a sede da Boas Novas na cidade é a mais ampla do país e onde são gravados os principais programas. São três estúdios de televisão. Celeste Fernandes ressalta que a Boas Novas não é uma rede da Assembleia de Deus, mas independente. “A empresa se originou com o pastor Samuel com o objetivo da divulgação da palavra de Deus. Somos uma rede com princípios cristãos. Mas não há intenção de que a Boas Novas seja uma emissora ‘igrejera’. A gente quer atingir todo [tipo de] público.”

Celeste é membro da Igreja Batista e diz que pertencer à Assembleia de Deus não é pré-requisito para trabalhar na empresa, tampouco ser evangélico, embora a religião facilite o exercício de determinadas funções mais relacionadas à área editorial. Ela conta que a Boas Novas dá espaço a outras igrejas em sua programação: “Queremos que outras instituições possam ver a Boas Novas como uma rede que busca divulgar a palavra de Deus, independentemente de denominação [religiosa]”.

Atualmente, a Boas Novas possui uma parceria com a Rede Gênesis, vinculada à Comunidade Evangélica Sara Nossa Terra: a emissora exibe parte de seu conteúdo na programação da Boas Novas e vice-versa. Mas Celeste admite que a empresa acaba com “um peso maior da Assembleia de Deus por causa do pastor Samuel Câmara”. No centro da maior parede da sala onde conversou com a reportagem, na sede da Boas Novas no Rio, uma pintura com o rosto de Samuel aparecia rodeada por homenagens recebidas por ele em diversos legislativos do país.

Retrato de Samuel na Boas Novas cercado de homenagens do Legislativo, na sede carioca da Boas Novas | Foto: Maria Martha Bruno / Gênero e Número

A diretora não revela números de audiência e afirma que o acompanhamento é feito via “redes sociais, com o retorno de telespectadores durante os programas”, e dos fiéis nas igrejas. “A gente não tem pretensão de chegar a padrões como os da Record, da Band… Embora tenhamos presença no Brasil, somos uma rede muito regionalizada”, explica. Celeste conta que o polo do Rio de Janeiro já chegou a trabalhar com funcionários em dois turnos, embora agora funcione em apenas um.

Ela também não fala sobre cifras. A Assembleia de Deus dos Câmaras conta com o projeto “Semeadores”, que disponibiliza duas contas correntes e o sistema PagSeguro para doações. Uma das principais fontes de renda é o aluguel de estúdios para produtoras e empresas como a Globosat, segundo Celeste. Além de publicidade, a Boas Novas vende horário seu comercial para parceiros que também veiculam programação religiosa.

Vários membros da família trabalham na Boas Novas e na Assembleia de Deus. Thiago Câmara, filho de Jonatas, é pastor em Manaus e o diretor da rede no Amazonas. A diretora de programação é Ana de Ava Câmara (prima de Samuel). Naiane Câmara, mulher de André, apresenta o “Voz Mulher” (programa de entrevistas descrito como “um culto de adoração a Deus totalmente organizado pelas mulheres”) e, ao lado do marido, é pastora no Rio de Janeiro. A mulher de Samuel Câmara, Rebekah, é pastora em Belém e divide com a nora o comando da mesma atração.

Celeste diz que a repetição do sobrenome não configura nepotismo (no Brasil não há lei que verse sobre o assunto em esfera privada, apenas na administração pública): “Ninguém está pendurado por alguma coisa. Está para trabalhar, por conta de um ideal. Eu estou aqui como profissional. A Rebekah é esposa do pastor Samuel, mas, caramba!, ela trabalha pra burro!”. A capilaridade organizada por Samuel Câmara a partir da família confirma a previsão de Celeste Fernandes: “Se ele morrer, o trabalho não acaba porque há pessoas próximas para dar continuidade.”

Homenagem no Senado

A relevância da Assembleia de Deus no Amazonas rendeu uma sessão solene no Senado Federal em novembro de 2017, em homenagem aos 100 anos de fundação da igreja no estado. O então senador Alfredo Nascimento (PL/AM), ex-prefeito de Manaus e ex-ministro dos Transportes nos governos de Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, falou sobre a ampliação da Assembleia e da Boas Novas em território amazonense: “No início, fui um dos mantenedores e, como prefeito de Manaus, dei todo o apoio institucional. Foi uma grande conquista liderada pela família Câmara e hoje [a Rede Boas Novas] é um importante braço da Assembleia de Deus no Amazonas (…) A Assembleia de Deus no estado é uma estrutura gigantesca”.

Nascimento destacou ainda um fator crucial para a penetração da igreja no Amazonas e que também se aplica à expansão das instituições evangélicas no resto do país: “Onde muitas vezes não há estrutura e serviços do Estado, há um templo da Assembleia de Deus apoiando espiritualmente e socialmente (sic) milhares de amazonenses”.

Senador Omar Aziz com Rebekah, Samuel, Ana Lúcia, Jonatas e Silas Câmara em homenagem do Senado à AD, em 2017 | Foto: Pedro França / Agência Senado

Silas Câmara e aliados aproveitaram seus discursos para levantar algumas das principais bandeiras da Assembleia de Deus e de outros segmentos evangélicos e conservadores do país. “A educação precisa tomar cuidado sobre a ‘ideologia de gênero’ como o desafio desse momento, dessa década, deste século”, disse o parlamentar na tribuna. Ele conectou o assunto à linha editorial veiculada pela Rede Boas Novas e criticou outras emissoras: “Algo está errado na comunicação do Brasil, porque se liga a televisão às 18h e já se encontra sexo explícito, confusão, roubo, briga, incentivo à ‘dissolvição’ (sic) da família. A Assembleia de Deus prega isso (sic), mas acha que só o discurso é pouco. Por isso, há mais de 20 anos instituiu a primeira rede de comunicação 100% evangélica e cristã”.

Durante a sessão, os três irmãos Câmara se sentaram na mesa do Senado. As esposas de Samuel, Rebekah, e de Jonatas, Ana Lúcia, observavam e fotografavam da primeira fila do plenário, que ainda contava com políticos de campos, em tese, antagônicos, como a ex-aliada Vanessa Grazziotin (PCdoB/AM) e o então senador Tião Viana (PT/AC). Como se estivesse no púlpito de um de seus templos, Jonatas fez um discurso inflamado que terminou com políticos, pastores e correligionários com as mãos para o alto, em prece. “Quantos abençoam essa nação? Levantem as mãos! Deem um sorriso! Deem uma gargalhada agora dizendo: por mais que Satanás queira destruir o Brasil, o Brasil é do senhor Jesus, porque tem autoridades e igreja fortes”, louvou Jonatas.

Coube a Samuel Câmara encerrar o evento, fazendo novamente o plenário emular um templo. Antes de entoar um cântico, ele arrematou seu discurso dizendo: “[A Assembleia de Deus] é a que está nos lugares de onde não se pode tirar nada. A que conhece o Brasil mais que muitas autoridades”.

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