CAP. IV
CONCESSÕES

Lula na inauguração da Record News, ao lado de Edir Macedo, durante seu segundo mandato | Foto: RicardoStuckert /Palácio do Planalto

CAP. IV
CONCESSÕES

Lula na inauguração da Record News, ao lado de Edir Macedo, durante seu segundo mandato | Foto: RicardoStuckert /Palácio do Planalto

Governo Lula foi período fértil para expansão de projeto de poder de evangélicos e cristãos, que hoje se alinham à extrema-direita e gozam da influência midiática construída também com concessões de rádio e TV

Por Giulliana Bianconi
Colaboração de Natália Leão e Flávia Bozza Martins

“Vocês nunca, na história da igreja evangélica, foram chamados à responsabilidade e a participar da construção desse país como eu vou chamar”, disse Luiz Inácio Lula da Silva.

“A gente não tem que ter medo, a gente tem que votar com consciência, porque se a gente permitir que prevaleça a teoria do medo, a gente vai voltar milhares de anos atrás, quando Herodes por medo do novo queria matar todas as crianças à procura de Jesus Cristo”.

Novamente, Lula.

Ambas as declarações foram dadas durante um almoço em uma churrascaria no Rio de Janeiro com lideranças evangélicas, em outubro de 2002, quanto o petista estava em plena campanha eleitoral na sua “versão light”, como se referia a imprensa ao Lula que conversava com a igreja neopentecostal e com o empresariado na sua quarta tentativa de se tornar presidente. As declarações são de reportagem publicada pela Agência Reuters naquele ano e acessadas agora pela Gênero e Número. Silas Malafaia e Pastor Everaldo eram alguns dos nomes que marcavam presença naquele almoço, apoiando publicamente o presidenciável. Dez dias depois, Lula, tendo como vice o hiper cristão José Alencar, venceria José Serra no segundo turno.

Se o Governo Bolsonaro, com o slogan “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”, vocaliza discursos evangélico e cristão mais conservadores, esse não é, de maneira irrefutável, o momento mais fértil da construção do projeto de poder da nação evangélica, principalmente dos neopentecostais, no Brasil.

“No início dos anos 80, momento de redemocratização no país, quando os conceitos de participação política e cidadania eram amplamente ventilados, as lideranças evangélicas se organizaram, em grupos pequenos ainda, para oferecer à sociedade vozes políticas que representassem esse grupo, e para isso tiveram o suporte de vários setores que olhavam com desconfiança para o movimento carismático [a Renovação Carismática Cristã] encampado pela Igreja Católica, o qual trazia uma crítica social e dialogava com valores da esquerda num momento em que havia certo temor sobre a expansão do comunismo”, explica Joanildo Burity, pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco e doutor em Ciência Política que investiga o tema do comportamento político conectado à religião há mais de 30 anos.

Fake News na Constituinte

Na Constituinte, se formou a primeira bancada evangélica do Congresso Nacional. Fake news já existiam e também catalisaram eleições. Houve o boato de que a Igreja Católica tinha a pretensão de fazer do catolicismo a religião oficial do país, e isso levou pastores da Assembleia de Deus a se elegerem com votações expressivas. No total, foram 32 eleitos.

“A IURD (Igreja Universal do Reino de Deus) tem uma participação na Constituinte, mas quem liderou esse processo foi a Assembleia de Deus, que inclusive nos anos 90 praticamente tomou de assalto o PSC (Partido Social Cristão), pontua Burity. “E já existia, desde aquele momento, um conservadorismo para relações de gênero, para a sexualidade, para o impacto da mídia na educação de crianças e havia o discurso da valorização da família, isso sempre existiu no discurso neopentecostal”, acrescenta.

Não existia, porém, um alinhamento natural dos neopentecostais à direita no Congresso Nacional, uma frente ultraconservadora ampla. O que havia era um conservadorismo eclesial, mas que permitiu, com costuras e pactos entre lideranças políticas e religiosas, que Lula fosse apoiado por grande parte desses parlamentares e suas igrejas novamente nas eleições de 2006.

A segunda expansão

Assim como a esquerda brasileira viveu em 2002 seu grande momento desde a redemocratização, aquele ano marcou também o início do segundo período fértil da ascensão neopentecostal no Congresso. As eleições levaram o bispo carioca Marcelo Crivella para o Senado com 3,2 milhões de votos, mostrando a força de uma base de fieis. Um ano depois, ele fundou o PRB, que se tornou o braço parlamentar da Igreja Universal do Reino de Deus.

O bispo Marcelo Crivella, atual prefeito do Rio de Janeiro | Foto: Taãnia Rego/Agência Brasil

Também eleito em 2002, o atual presidente do partido, o deputado federal João Campos (PRB/GO), já em seu quinto mandato na Câmara, lidera o topo da lista dos perfis mais influentes na promoção do discurso da “ideologia de gênero” no Centro-Oeste. O dado é do mapeamento de perfis feito pela Gênero e Número para o desenvolvimento do Reino Sagrado da Desinformação, que identificou 120 perfis nos campos da mídia, política e religião atuando no Brasil com destaque quando o assunto é enfrentamento à “ideologia de gênero”. Campos, que já presidiu a bancada evangélica no Congresso, foi o autor do decreto legislativo que propôs a “cura gay”, em 2013. Também apresentou, em 2011, a Proposta de Emenda Constitucional que daria à igreja o poder de questionar o Estado Laico – a proposta caminhou até 2015, com parecer favorável de uma comissão Especial na Câmara, mas ainda não seguiu para votação em Plenário.

“Um semeador saiu a semear a sua semente e, quando semeava, caiu alguma junto do caminho, e foi pisada, e as aves do céu a comeram”
Lucas 8:5

Lula semeou. Entre o início do primeiro mandato e 2006, sua segunda campanha vitoriosa, fez as conexões necessárias para se reeleger, incluindo a bancada evangélica e lideranças religiosas país afora, que eram também as de religião de matriz afro e as católicas. Em 2007, primeiro ano do segundo mandato, não à toa Lula estava ao lado de Edir Macedo no lançamento da Record News, o canal de notícias da Record, com transmissão 24 horas.

A Empresa Brasileira de Comunicação (EBC), criada em 2007, foi um vento fresco em meio a tanta concessão de rádio e de TV para políticos ou famílias tradicionais da política brasileira. Hoje, 12 anos depois, a EBC cambaleia para manter sua missão de realizar comunicação pública e com independência editorial. Desde o Governo Temer, o aparelhamento da estatal vem sendo denunciado por profissionais da empresa e pelos Sindicatos de Jornalistas e Radialistas, que veem um desmonte em curso no governo Bolsonaro.

“O Congresso sempre foi dono de rádio e televisão, é importante dizer isso, mas você percebe nas mudanças partidárias e na concessão de rádio e TV feitas a partidos ligados às igrejas evangélicas como esse grupo se torna mais influente a partir dos anos 2000”, diz Suzy dos Santos, líder do Grupo de Pesquisa Políticas e Economia da Informação e da Comunicação (PEIC/UFRJ).

A pesquisadora que tem diversas publicações acadêmicas sobre concessões de radiodifusão no país e analisa a relação entre mídia, política e religião dissecando as políticas de comunicação destaca: “É da democratização esse fenômeno de troca-troca, de toma lá dá cá, de autorizar concessões que vão fortalecer alianças com empresários e entre partidos, porque no período autoritário há concessões de TV e rádio mas o Estado controla muito mais, e não precisa dos concessionários”.

Ela destaca que há um momento-chave da história para entender isso. “Quando Antônio Carlos Magalhães foi indicado para ministro, temos entrevista do [José] Sarney falando que o Tancredo Neves [presidente] tinha dito que precisava consultar o doutor Roberto [Marinho]”, afirma Suzy. “É a primeira vez que temos um ministro das comunicações explicitamente indicado por um empresário.”

Democratização arquivada

A discussão sobre a democratização da mídia e a necessidade de regulação dos meios eletrônicos de comunicação era pauta da sociedade civil organizada, e entrou de fato na agenda do governo depois da 1ª Conferência Nacional de Comunicação (Confecom), realizada em dezembro de 2009, no segundo mandato de Lula.

“Representantes das organizações sociais, de parte do empresariado, incluindo empresas de telecomunicações e algumas redes de televisão, e de instâncias governamentais, estiveram na conferência. A maioria dos grandes grupos de comunicação social, que formam o oligopólio da mídia existente no Brasil, como as Organizações Globo, a Record e o SBT e os jornais Estado de S. Paulo e Folha de S. Paulo, abandonaram a Confecom durante sua fase preparatória”, recorda o ex-ministro-chefe da Secretaria de Comunicação Social (Secom) do Governo Lula, Franklin Martins.

Em entrevista a Gênero e Número, Martins apresenta números daquele momento: “Foram aprovadas na conferência cerca de 700 propostas, das quais 600 com o apoio de mais de 80% dos votantes, destinadas a democratizar a mídia, regular os meios de comunicação eletrônicos em moldes semelhantes aos existentes na maioria dos países democráticos e dotar o Brasil de uma legislação moderna e democrática no processo de convergência de mídias. Nenhuma proposta de censura ou controle da imprensa foi aprovada na Confecom”, garante.

Franklin Martins, em 2010, quando ocupava o cargo de ministro-chefe da Secretaria de Comunicação Social | Foto: Antonio Cruz/Agência Brasil

A partir de junho de 2010, o então ministro passou a coordenar um grupo de trabalho com a participação de vários ministérios. A missão era preparar um anteprojeto de regulação dos meios eletrônicos de comunicação, partindo das resoluções da Confecom.

Como se sabe, a democratização da mídia no Brasil, como projeto amplo, não se efetivou. Martins atribui ao Governo Dilma, iniciado em 2011, a estagnação do processo. “O anteprojeto do novo marco regulatório das comunicações eletrônicas foi entregue por mim, ainda ministro-chefe da Secom, à presidente eleita Dilma Rousseff, no dia 30 de dezembro de 2010, ou seja, na antevéspera de sua posse na Presidência. Dilma, no entanto, jamais tornou público o documento ou apresentou um projeto alternativo, nem tomou qualquer iniciativa para prosseguir com o debate”, afirma ele.

A construção do projeto de poder midiático das igrejas seguia seu curso, apesar de as igrejas não terem, com o CNPJ da instituição religiosa, acesso direto às concessões de rádio e TV, por ser prática inconstitucional no estado brasileiro. O ex-ministro não nega o fenômeno e atribui grande parte dele à comercialização do espaço comercial das TVs e rádios Às igrejas. “A expansão se deu porque as empresas privadas de rádio e TV passaram a vender horários da sua programação, sendo várias horas por dia, a diferentes igrejas, foi o caso, por exemplo, da Band, da Rede TV, da Record e de muitas rádios, e aos poucos, essa venda passou a ser uma importante fonte de renda para os grupos privados, tornou-se parte significativa de seu modelo de negócios”, contextualiza. “Evidentemente, uma burla à legislação e aos contratos de concessão, mas a inexistência de órgãos reguladores abriu espaço para essas gambiarras e malandragens”, ressalta.

Sempre foi pela Família

Nas eleições de 2018, Lula estava preso. Os pactos haviam se rompido. Jair Bolsonaro se elegeu presidente, com apoio dos mesmos líderes evangélicos da Era Lula: Edir Macedo, Silas Malafaia, Marcelo Crivella. E com novos nomes, que ascenderam desde os anos 2000, como o Pastor Everaldo, atual presidente do PSC, que em 2012 promoveu a campanha “Homem + Mulher = Família” no partido.

“Há uma descontinuidade dessa relação pacífica entre a bancada evangélica e e a esquerda a partir de 2011, quando a gente vê o grupo do ‘baixo clero’ conservador e neoliberal fazendo alianças por conta própria”, destaca o pesquisador Joanildo Burity. 2011 foi o ano em que a Polícia Federal divulgou relatório confirmando as denúncias do Mensalão, principal escândalo de corrupção do governo Lula.

Para justificar a mudança de orientação aos fieis, escancarada no momento do impeachment, quando apoiaram o processo contra Dilma Rousseff, e promover o alinhamento a uma direita ultraconservadora, os líderes neopentecostais escolheram as cruzadas contra a corrupção e a ideologia de gênero, que propagam como uma “ideia satânica” e a grande ameaça contra a tradicional família brasileira.

Bolsonaro, até então integrante do baixo clero, foi para o topo da hierarquia do poder constituído clamando pela família tradicional. E fortaleceu a bancada evangélica do seu partido. Em 2018, o PSL elegeu nove deputados federais ligados a igrejas, a mesma quantidade do PL, que tem muito mais tradição nessa seara. Na legislatura de 2014 o PSL não contava ainda com nenhum deputado nessa bancada. O aumento é resultado do fenômeno Bolsonaro.

O PRB, que emplacou 30 deputados federais e um senador nas eleições de 2018, conta com 21 deputados evangélicos, todos conectados a igrejas neopentecostais. Já o PSC conta com 8 deputados federais – cinco deles da Assembleia de Deus.

“O início do projeto evangélico, lá nos anos 80, era muito mais benigno do que hoje, era sobre representatividade e busca de participação política, mas agora temos um distanciamento brutal daquela inspiração, onde existe claramente um projeto de poder de um grupo”, pondera Burity.

As dissidências no movimento evangélico existem, apesar disso. Embora uma das maiores taxas de aprovação do Governo Bolsonaro, de acordo com o Datafolha, seja justamente o dos evangélicos (41% deles aprovam), não se trata de uma massa ultraconservadora. “O ponto é que o controle dos mecanismos de mídia e o investimento feito em mídia, incluindo mídias sociais, pelo grupo conservador, faz com que furar esse aparato seja tarefa hercúlea, desde o impeachment”, diz o pesquisador.

Coautora do livro Sempre foi pela Família, a pesquisadora Suzy dos Santos analisa ainda que Bolsonaro não era um plano da Globo, da Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo), das elites. “Mas não contavam com o aparato na internet, com a força mundial dessa onda de ‘direitização’ e nem com a tendência de perfis comunicadores conservadores assumindo a presidência de países. Trump é um grande exemplo, mas há Putin [Vladimir Putin], que tem o tradicional programa de perguntas e respostas na TV [Linha Direta] na Rússia e as Filipinas, onde o presidente de extrema-direita [Rodrigo Duterte] era apresentador de programa semanal na TV.”

Se a onda de ascensão de comunicadores que contam com o aparato midiático da direita continua e mobiliza fieis e simpatizantes do discurso ultraconservador, é preciso reconhecer o potencial de nomes que flertam com os pentecostais sem assumir a palavra de Deus como discurso político, como Joice Hasselmann (PSL/SP) e Celso Russomano (PRB/SP), hoje deputados federais. Para além da igreja e com a igreja, novos pactos, sem a esquerda, já estão firmados.

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