CAP. V
O SHOW DE
JOICE

Deputada influencer: Joice Hasselmann completou com louvor a transição do jornalismo para a política | Foto: Cleia Viana/Câmara dos Deputados

CAP. V
O SHOW DE JOICE

Deputada influencer: Joice Hasselmann completou com louvor a transição do jornalismo para a política | Foto: Cleia Viana/Câmara dos Deputados

Análises de discurso em vídeos, de projetos propostos e de rede no Twitter de Joice Hasselmann mostram que a deputada federal, principal influenciadora digital parlamentar, assume o discurso da ideologia de gênero com abordagem 100% política e sem tom religioso

Por Giulliana Bianconi

Joice exagera, performa, mas não é uma personagem. Comunicadora habilidosa, criou seu próprio estilo. Enérgica e combativa, agradou na internet.“Enquanto eu tiver uma gota de energia, de suor e de sangue, eu vou lutar por esse país. Quando eu vejo cada um de vocês, eu vejo que tem esperança, sim”, dizia ela em campanha, na Avenida Paulista, pouco antes de ser eleita deputada federal com mais de um milhão de votos por São Paulo, em 2018. Na internet, Joice exibe há alguns anos seu inegável carisma, mas também agride. Xinga líderes da esquerda, ameaça jornalistas dos quais ela discorda, sobe o tom contra desafetos da política – que por vezes são do mesmo partido que ela, o PSL. Joice tem o respaldo da audiência. Atualmente, são mais de 1,2 milhão de assinantes no Youtube, 1,7 milhão no Instagram, 360 mil no Twitter e 2,3 milhões no Facebook. Um total, até o fechamento desta reportagem, de 5,5 milhões de perfis conectados a Joice apenas em ambientes de redes sociais.

Joice Hasselmann é a parlamentar mais influente nas mídias sociais, conforme estudo da agência especializada em estratégias digitais FSB, que posicionou a parlamentar em primeiro lugar em dois momentos neste ano. No ranking mais recente, a deputada federal aparece muito à frente do segundo colocado, Eduardo Bolsonaro (PSL/SP). Foram analisados todos os 594 deputados e senadores – que estão presentes em pelo menos uma das três redes sociais monitoradas, Facebook, Instagram e Twitter.  O show de Joice na mídia não para. Há closes em plenário no Instagram ao longo do dia e “resumões do dia” em plena madrugada, às 2h da manhã.

No Twitter, a intensidade depende da agenda. As postagens são em menor número do que no Instagram, rede onde o tom jornalístico, o nacionalista e o policialesco estão presentes nas imagens editadas com letras em caixa alta, sempre em quatro cores: verde e amarelo, vermelho e preto. São entre cinco e dez imagens por dia no Instagram. As publicações são simplórias, sem sofisticação no design. É a linguagem popular da campanha de Jair Bolsonaro em 2018. Pelo conjunto da obra nas redes e nas ruas, Joice Hasselmann, sintonizada ao estilo do presidente, foi a escolhida de Bolsonaro para liderar o partido na Câmara.

Mesmo sendo estreante na cadeira de deputada, ela chegou ao Congresso ostentando a maior votação que uma mulher já teve para o cargo no Brasil. Tanta presença e influência não foram construídas da noite para o dia, ou apenas durante uma campanha eleitoral. Joice já existia na política bem antes de concorrer ao cargo, como jornalista e atuante nos movimentos de direita.

A jornalista que brindou o impeachment

Em 2012, Joice já analisava o cenário político com tom conservador na TV e no rádio, plataformas onde começou a forjar sua voz pública de direita. Mas ganharia mentes e corações ao ocupar a bancada de apresentadora web da Veja, em 2014, quando lançou e foi a responsável pela TV online da empresa, A TVeja. Lá, ela subiu o tom, atacando frontalmente a esquerda. Em um dos editoriais, afirmou que Lula e Dilma formavam a dupla que havia roubado o futuro da nação, em vídeo que lhe custou o cargo. Mas não a audiência. Com canal próprio no Youtube, Joice seguiu em alta com seus vídeos.

Com a Lava-Jato, viu a fama de verdade chegar. Entusiasta da operação, a jornalista encontrou a narrativa adequada ao seu público para se tornar um dos rostos da mídia da “nova direita no Brasil”. Com taça na mão, brindou o impeachment de Dilma Rousseff no seu no seu canal do Youtube. “Acabou, e como prometi para você, um brinde (…) Um brinde a você, um brinde a mim, um brinde à nação brasileira (…) Esse é um dia muito emocionante para quem tem honra”, disse em vídeo publicado às quatro da manhã após votação do Senado.

Para a cruzada antipetista e pró-impeachment, Joice não poupava sábado nem domingo. Com o título “Dilma é safadinha mesmo!”, ela critica a ex-presidenta, num vídeo postado num sábado, pela autorização de verba a um evento cultural onde a atração principal seria o cantor Wesley Safadão. “A maluca da Dilma, dois dias antes de ser afastada, autoriza a liberação desses R$ 6 milhões”, brada em vídeo. Maluca, louca e outros termos pejorativos eram usados com frequência pela jornalista para se referir a Dilma Rousseff. “A louca do PT” também é uma expressão já usada para se referir a Gleisi Hoffmann.

A linguagem agressiva, com desqualificações constantes daqueles que ela considera seus adversários políticos, é usada pela pesselista em todas as redes sociais há anos. Agora líder da legenda na Câmara, Joice parece dobrar a aposta nos conflitos em vez de conciliar. Bateu boca com o filho do presidente, Eduardo Bolsonaro, com o presidente do PSL no senado, Major Olímpio, criou tensões com jornalistas antes e depois de eleita, como o caso recente que envolveu o jornalista de The Intercept Glenn Greenwald, após o veículo revelar conversas diversas que evidenciam a instrumentalização política da Lava-Jato. Até o momento, Joice só se curva ao presidente, a quem defende em entrevistas e em declarações públicas sempre com um sorriso no rosto.

Sem contrariar a plateia de 1 milhão de votos

Assim como Jair Bolsonaro, Joice joga para sua plateia. Nega o feminismo porque diz que o movimento se desvirtuou. Em entrevista à repórter Andreia Sadi, da Globonews, em abril deste ano, a deputada responde sobre o porquê de não ser feminista. “Se distorceu [o movimento] demais, não é mais aquela coisa que você brigava para ter um espaço, brigava pelo voto, hoje o feminismo virou um grupo de mulheres, de forma geral, que quer atacar os homens. Quem ganha com isso?” E complementa: “O que me incomoda é você ter um movimento que se diz representante da mulher, mas que não representa a maioria das mulheres”.

Em pesquisa recente, o DataFolha apontou que no Brasil 38% das mulheres se consideram feministas. O mesmo levantamento mostrou que as eleitoras de Bolsonaro se consideram, proporcionalmente, menos feministas (32%) do que as que votaram em Fernando Haddad (49%) no segundo turno das eleições. Entre as mulheres que aprovam o governo Bolsonaro, 29% se associam ao feminismo. Já entre as que o desaprovam na universo da pesquisa – que ouviu 2.086 mulheres – 48% se dizem feministas. Joice sabe que, num curto prazo, não será de feministas a sua base eleitoral.

Também eleita deputada federal por São Paulo, Sâmia Bomfim (PSOL/SP) é um dos rostos do feminismo no Congresso atual. “Joice se apresenta como o Bolsonaro de saias, e ela é isso mesmo, opta muitas vezes por uma postura truculenta, está em conflitos permanentemente e não se sensibiliza por uma perspectiva de gênero”, afirma Sâmia sobre Joice, antes de citar como exemplo debates travados durante a aprovação do texto da Reforma da Presidência. “Mesmo Joice sendo a representante do governo na Câmara, chegou um momento em que a Bancada Feminina foi conversar direto com Rodrigo Maia, para debater tempo mínimo de aposentadoria das mulheres e pensão por morte, pois ela age para aprovar a política do governo”, conta. Todas as deputadas eleitas estão na chamada Bancada Feminina, que funciona como um espaço temático, suprapartidário, onde assuntos relacionados a direitos das mulheres têm centralidade. Joice não busca atuação marcante na bancada, mas afirma em entrevistas que as mulheres estão precisando de “representações femininas, e não feministas”.

Moro, o herói

Entre o brinde ao impeachment de Dilma e o brinde que também fez em seu canal à prisão do ex-presidente Lula, em 2018, Joice circulou pelo Brasil fazendo eventos de lançamento da biografia de 208 páginas do juiz Sérgio Moro, A história do homem por trás da operação que mudou o Brasil, da qual é autora. Na narrativa de Joice, o juiz Sérgio Moro é o heroi do Brasil contemporâneo.

No lançamento do livro no Piauí, em 2016, deu sinais de que sua articulação já era além-Sudeste. Em Teresina, recebeu um dos líderes locais do movimento “Vem pra Rua”. Juntos, os dois convidam: “Dia 31, vem pra rua”. Referiam-se à manifestação de 31 de julho de 2016, a quarta daquele ano com mobilização nacional contra a então presidenta.

“Nós e eles”

A dois anos das eleições de 2018, a Joice jornalista já falava sobre “nós e eles”, colocando-se sempre do lado de uma direita que tinha como missão maior acabar com a corrupção, como disse em evento que reuniu lideranças de movimentos de direita. “Nós temos diferenças, mas temos um só ideal, que é acabar com a corrupção, ah, isso é difícil demais, mas quem disse que era fácil? Ninguém prometeu que era fácil, ninguém saiu por aí dizendo que era moleza ou que a gente ia trabalhar só agora para derrubar a Dilma e ia acabar o nosso trabalho. Nãaao, ninguém prometeu nadar no mar calminho, é tempestade, mas eu não tenho medo, e vocês também não”, discursou a jornalista, dando sinais de sua habilidade para o palanque.

Em 2017, Joice já estava em campanha. Nas manifestações “anticorrupção”, ela chegou a marcar presença em São Paulo e no Rio de Janeiro em um mesmo dia, para acompanhar os eventos nas duas cidades. “Bolsonaro ontem esteve lá no meu caminhão, meu caminhão não, né, gente, caminhão que tinha a minha foto, mas dos movimentos, eu fui convidada para estar lá, e quando vi o Bolsonaro estava lá embaixo, de bracinho cruzado assistindo e eu chamei ele para subir no caminhão e ele foi lá”, conta em vídeo publicado por ela em seu canal do Youtube, no qual ela repete algumas vezes “Eu não desisto do meu Brasil”.

Nos registros do dia anterior, o dia da citada manifestação, há vídeo de Joice em cima do caminhão do movimento Vem pra Rua, no Rio de Janeiro, com microfone na mão: “Eu tô toda, toda cheia de almofadas e curativos, saí agora há pouco de um processo cirúrgico, tô com ponto arrebentado, mas não desisto do meu Brasil”, brada ela, enrolada na bandeira do Brasil.

“Judith Butler, a bruxa da ideologia de gênero”

Para quem assumia lugar de destaque na nova direita que combate os “esquerdinhas e esquerdopatas”, como Joice se refere a quem está em espectro político distante do seu, em várias ocasiões nos vídeos publicados no seu canal, ela precisava abraçar o conservadorismo de costumes, que não fazia parte da sua narrativa política de forma tão central como passou a ser a partir de 2017.

Em outubro daquele ano, dedicou um boletim do dia no seu canal à filósofa Judith Butler, pesquisadora da área de estudos de gênero. “Ela é a mãe da ideologia de gênero, como ela se apresenta no mundo e nas escolas”, disse a jornalista em vídeo, numa frase ambígua, que deixa em aberto se Butler se apresenta como mãe da ideologia (Leia a nossa entrevista exclusiva com Judith Butler).

No vídeo de 19 minutos, que tem como título “Judith Butler, a bruxa da ideologia de gênero”, Joice ironiza: “Essa mãe da ideologia de gênero, ou pai da ideologia de gênero, não sei como ela prefere ser chamada, enfim, essa coisa esquisita que é essa Judith Butler (…)”. No decorrer do vídeo, ela deturpa o que Butler defende em seus estudos. “Primeiro, vou dizer para você algumas coisas contra a ideologia de gênero (…) é uma baboseira esse negócio de ideologia de gênero, só alguém sendo muito maluco para olhar um menino que nasce com órgão sexual masculino e dizer que ele não é menino e uma menina, que nasce com órgão sexual feminino, e dizer que não é menina”.

Butler, em seus estudos, questiona o sexo como definidor do gênero, pois para ela “o gênero não deve ser meramente concebido como a inscrição cultural de significado num sexo previamente dado”, como escreve no livro Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Mas não o faz negando a possibilidade de menino ser menino e menina ser menina. No mesmo vídeo, Joice segue: “ideologia de gênero é uma palhaçada, baboseira, uma asneira, e é uma canalhice que acontece com foco claro em atacar a nossa infância. É baixaria, gente”. A conexão com a política brasileira vem na sequência: “Inclusive tentaram enfiar na nossa base curricular, e tentam enfiar na educação aqui no Brasil de qualquer jeito”, afirma ela.

“O Brasil não é isso, o Brasil não aceita isso. O Brasil é um país conservador, não adianta. Eles querem desconstruir a sexualidade das crianças e querem induzir as crianças a experimentar todo tipo de coisa, essa ideologia de gênero é uma sexualidade muito precoce,  porque os defensores da ideologia de gênero, como essa Judith Butler, dizem que há mais de 30 gêneros (…) Então ficam enfiando essas baboseiras na cabeça das crianças, e essa Judith Butler, que é a papisa da ideologia, propõe que a pessoa vivencie todo tipo de experiência sexual, e quando eu tô falando pessoa, eu estou me referindo às crianças porque isso é colocado na cabecinha das crianças.”

Discursos como o de Joice neste vídeo que apenas no Youtube conta com mais de 100 mil visualizações não são originalmente fomentados na direita brasileira. A narrativa surgiu em espaços religiosos, primeiramente (Leia a reportagem “A Palavra”) cristãos. Pesquisadores da psicologia e da comunicação já usam o termo pânico moral para nomear o efeito que o alarde e a desinformação sobre a realidade da educação sexual nas escolas têm gerado nas famílias. Como já foi visto no Brasil em 2018, também se reflete nas urnas.

A rede predominantemente política

Desde que Joice incorporou a ideologia de gênero ao seu discurso, ela o faz com parcimônia. Não é uma pregação, tampouco pauta central no seu mandato. Mas ela é uma entre os 22 autores, por exemplo, que assinaram o projeto de lei do Escola sem Partido na versão apresentada já no primeiro dia de trabalho dos deputados, neste 2019.

Com oito meses de mandato, Joice já tem seu lugar no primeiro escalão de um Congresso conservador por rezar a cartilha bolsonarista, que inclui, além do conservadorismo de costumes, uma pauta ultra liberal. “Eu sou sempre a favor da liberdade”, repete sempre. Em 15 de janeiro, no Twitter, ela escreveu: “Vou trabalhar com o governo @jairbolsonaro pra liberar o PORTE de armas para o cidadão de bem. Em breve, a mulherada do meu país andará em cima do salto e com sua arma, como eu faço nos EUA”.

O deputado delegado Éder Mauro (PSL/PA) discute com manifestantes durante reunião da Comissão Especial da Câmara, em 2018, que analisava PL do Escola sem Partido. | Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Embora ainda tropece nos diálogos com parlamentares e nas articulações necessárias no jogo político em Brasília, como avaliam fontes ouvidas pela Gênero e Número para este especial, ela sabe manejar audiências. No Twitter, prioriza a construção de uma rede política. É onde replica mensagens do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, onde se expressa numa linguagem mais direta, sem memes.

De acordo com o mapeamento de perfis feito pela Gênero e Número para o desenvolvimento do Reino Sagrado da Desinformação, que identificou na plataforma Twitter 120 perfis nos campos da mídia, política e religião atuando no Brasil com destaque quando o assunto é enfrentamento à “ideologia de gênero”, as conexões de Joice, neste universo dos mapeados, são essencialmente políticas.

Hoje, assim como quando começou o seu projeto político, Joice não para. Não trabalha apenas em Brasília. Em um sábado de agosto, marcou presença em Barueri, no interior de São Paulo. Foi recebida com palmas e gritos da plateia de “prefeita, prefeita”. Era um dos eventos de novos filiados do PSL. Ela não desconversou. “Sou candidata com ‘pré’ na frente, disse diante da plateia. Meses antes, esteve em Limeira, onde já havia feito campanha em 2018. Dessa vez, foi ao Agrishow, evento de peso do setor. Seguindo sua onipresente estratégia de redes sociais, gravou vídeo paramentada de bota e chapéu de caubói. Na publicação, ela elogia “O Brasil que dá certo”, referindo-se ao agronegócio. Joice, a deputada influencer, não deixa dúvidas de que já completou sua transição do jornalismo para a política. E seguirá usando o aparato midiático a seu favor.

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